Confesso que nunca entendi muito bem a palavra “paixão” sendo usada na expressão sexta-feira da paixão no sentido de sofrimento, tortura e morte. Ficava achando muito desconexo porque paixão é coisa boa que encanta, que coloca os olhos nos céus, que tira os pés do chão. Faz com que a gente perca a noção do tempo e deseje morar no peito do outro. Mas não aqui.
Na sexta-feira santa a palavra paixão traz à tona os extremos dos quais somos capazes, o grotesco e o sublime que nos habitam. Nestas cenas nos deparamos, por um lado, com um Estado perverso que faz alarde do seu prazer, usando da crueldade para impor seu poder e do outro lado, temos o contraponto de mulheres corajosas, do povo, que não arredam pé de acompanhar toda a situação em silêncio, sem tirar os olhos do ser amado, mantendo o cuidado apesar da distância e apesar dos perigos.
Neste dia na distante palestina, teve gente ardilosa que não presta forjando mentiras para assassinar um inocente, usando a capa da religiosidade e aqui eu suspiro: quanto já foi feito em nome de Deus, quanta barbárie pseudo-justificada, quanto sangue regou a terra e ainda hoje é assim! Mas paradoxalmente tem também o Deus-homem que, por decisão, amou até o fim. E olha que amar até o fim nesse contexto de desamparo, dor, solidão e fraqueza é coisa rara de se achar.
Sexta-feira da paixão é o retrato de duas insistências: a teimosia em encontrar meios de aniquilar e a teimosia em encontrar meios de cuidar. Sim, morte e vida caminham lado a lado nesse dia, desejos obscuros e amores quase palpáveis se encontram em praça pública e nos ensinam muito. Falam das motivações do coração e já foi dito que é dele que procedem as saídas da vida; nele habita a eternidade. É no coração que está o que de mais precioso devemos guardar porque, sejamos honestos: somos dirigidos pelos nossos afetos.
Será que temos consciência disso, de que nossos afetos nos empurram tanto assim pros nossos destinos? Lembro de Lenine que naquela sabedoria resplandecente de música diz haver dentro do nosso peito “um desejo martelo e uma vontade bigorna”. Se examine por um momento, aceite essa provocação: seu desejo anda martelando o que? Perdão, solidariedade, insistência em amar ou acusações, mentiras, vingança?
De que lado, no hall dos personagens da sexta-feira santa, você tem se colocado a partir dos seus afetos: dos que crucificam ou do crucificado, dos que espancam ou dos que caminham ao lado na via Crucis, dos que zombam cruelmente ou das que esperam para acolher o corpo e dar-lhe uma dignidade final?
Sabe por que te proponho isso? Porque ao reconhecer o que nos afeta, temos clarividência do caminho que desejamos percorrer e isso pode mudar totalmente o rumo da sua vida. Do mesmo jeitinho que Olga disse, te proponho a lutar “pelo justo, pelo bom e pelo melhor do mundo”, a se apaixonar pelo Crucificado, com cada fibra deste teu coração vacilante.
Diante desta cena não dá pra ficar anestesiado. Não mesmo! Nossas entranhas devem se comover pois é humano, demasiado humano ser empático a dor do outro muito embora tenhamos perdido esse dom pelo caminho. Por isso eu te peço: olhe pra dentro de você e tente enxergar quais desejos e afetos te movem diante da violência e do desejo de poder que O crucificaram.