“Memória é resistência! Quando um pastor e um guerrilheiro se encontram”, por Claudio Ribeiro e Magali Cunha*

O que um pastor evangélico, que nunca se meteu em política, e um guerrilheiro, que confrontava uma ditadura, podem ter em comum? É de um encontro inusitado, permeado de tensões com cheiro de morte e de sublimes emoções, que brotam respostas, definitivamente muito longe do “nada” a que somos tentados a dizer.

O cenário deste encontro é um dos porões onde presos sofriam as mais cruéis torturas durante a ditadura militar, vivida por 21 anos no Brasil. Conhecer a instigante história, narrada pelo filme “O pastor e o guerrilheiro”, dirigido por José Eduardo Belmonte, é um mergulho nesta memória que cada vez mais nos ajuda a entender o presente.

O longa é baseado em uma história real, narrada no livro “Araguaia: relatos de um guerrilheiro”, de Glênio Sá (Editora Anita Gabibaldi, 2004). A trama envolve três protagonistas e se passa nas décadas de 1960, 1970 e, paralelamente, nos últimos dias de 1999, na virada do milênio.

O jovem comunista Miguel Souza (Johnny Massaro), em 1968, deixa a universidade e se engaja na luta do Araguaia, em longínqua floresta do interior de Goiás. Lá ele é preso, torturado e enviado para uma insólita prisão em Brasília, onde encontra Zaqueu (César Mello), um jovem cristão evangélico, preso por ser amigo de militantes de oposição à ditadura.

Em 1999, Juliana (Julia Dalavia), ativista estudantil, filha de um coronel reformado do Exército, precisa decidir se recebe a herança que lhe foi deixada pelo pai que havia morrido. Em um livro encontrado nos pertences do coronel, ela mergulha na memória de Miguel e, por meio dela, a de Zaqueu, que anos depois havia se tornado um pastor evangélico. A jovem revê suas raízes, reafirma convicções e vivencia novas trajetórias.

Além disso, o filme retrata muito bem a tensão presente nas igrejas, entre líderes “raiz”, fiéis ao Evangelho, que buscam “qualidade e não quantidade”, e líderes da religião da visibilidade, dos números, do sucesso, do alcance a qualquer custo.

O pastor e o guerrilheiro também se encontram nos dilemas e na angústia das situações-limites da vida. Dignidade e coragem de quem vê na delação uma fraqueza e na justiça um alvo estão ali presentes, na contramão da dor, do sofrimento, da tortura e das possibilidades de benesses. Tudo é denso e complexo. Não há respostas simples.

Saímos da sessão especial de lançamento do filme, preparada para evangélicos no Rio de Janeiro, permeados de emoções, lágrimas e de reflexões sobre a importância de se rever o passado. Também, de pisar firme no complexo chão que o quadro social e político nos oferece, e com os olhos grudados no futuro. Afinal, somos do Coletivo Memória e Utopia!

A fé do pastor Zaqueu e a fé do guerrilheiro Miguel, embora tão distintas, estão, na verdade, muito próximas de sentido: um salto no escuro, um jogo de incertezas, a plena convicção do que dá sentido à vida. Assim, a cada cena, a fé no humano e no divino iam sendo ressaltadas. O encontro dessas duas dimensões que nos são tão caras ia abrindo caminhos de diálogos e discernimentos. A paz e a justiça se moviam em um saboroso beijo, e a vida, “sempre desejada por mais que esteja errada”, se projetava em sonhos e era valorizada.

Imaginação, criatividade, aventura. Coisas da fé, para além dos limites religiosos que nos prendem e das certezas que não nos deixam arriscar. O psicanalista Helio Pellegrino nos chama atenção para uma sublime possibilidade humana: acertar e errar. Ele nos mostra que

a postura religiosa diante do mundo implica, necessariamente, a intuição – e o exercício – de um ‘sentimento oceânico’, por cujo intermédio os seres, captados em sua inexaurível riqueza, se banham num mesmo mar de transcendência que os liga – e religa. A posição religiosa legítima é o contrário da intolerância e do sectarismo. Ela sabe que Deus escreve certo por linhas tortas. Sabe, além disto, que as linhas ou caminhos humanos são quase sempre tortos, uma vez que, por decreto divino, foi conferido ao homem – estruturalmente – o amargo privilégio do erro. É aí, na tergiversação da errância, que Deus costuma plantar os rastros de sua presença – ou do seu apelo. (A burrice do Demônio, Ed. Rocco, 1989, p. 74)

Foi inquietante assistir à jornada de cada personagem, em especial os seus dramas, suas culpas, seus traumas e os seus valores. A jovem Juliana não quer esquecer as bases do seu passado e vai com determinação atrás delas. O carcereiro, diante das ambiguidades de suas tarefas, avalia o seu passado. O pastor almeja ser íntegro e justo no seu trabalho e na relação com o filho e a filha, ambos líderes religiosos. O revolucionário, se mantem firme em seus propósitos de justiça e fiel à causa que abraçou e espera ansiosamente o reencontro com a amada. Ele sabia que “é preciso endurecer, sem perder a ternura jamais”.

É a inebriante aventura de busca da verdade como reparação dos traumas pessoais e coletivos. Esquecer não permite a cura das feridas presentes e nem oferece esperança de transformação no futuro.

O filme é um legado significativo para as novas gerações. Ele realça a herança de quem lutou pela democracia, de quem considera que a verdade liberta, de quem afirma a solidariedade não apenas como uma palavra vazia para bonitos sermões. “Quero trazer à memória o que me pode dar esperança” (Bíblia, Livro de Lamentações 3.21).

É certo que memórias podem ser doloridas, sim, e, por isso são, muitas vezes, voluntariamente apagadas e silenciadas porque trazem lembranças de dor. Recordamo-nos das tantas pessoas que foram abusadas e das vidas violadas nas prisões da ditadura militar do Brasil, que nem desejaram dar depoimentos à Comissão Nacional da Verdade, pois queriam manter as atrocidades sofridas no esquecimento. O trauma da tortura deixou marcas irreparáveis para muitos brasileiros e brasileiras.

No entanto, o chamado profético ecoa, em tempos de dor coletiva, causada pelas feridas que ainda seguem abertas em nosso Brasil e pela incerteza do futuro. Torturas, mortes e arbitrariedades seguem vivas, especialmente contra os pobres e a população negra do país. Somos chamados a buscar na memória, o que traz esperança e fé.

A beleza desta concepção está justamente no fato de a esperança ser um elemento dinâmico. Ela é um motor de transformação. Anima. Impulsiona à resistência, a um “novo tempo, apesar dos perigos e dos castigos”, que “seja mais que vingança, seja sempre um caminho que se deixa de herança”, como nos encanta a canção popular.

Assistir ao filme “O pastor e o guerrilheiro”, além de nos tocar profundamente, nos fez reafirmar o valor da memória, não só como recuperação importante do passado, mas também como utopia, seguindo a inspiração dos profetas. É o olhar para o passado como algo que alimenta o presente e o futuro.

Já nos dizia o teólogo Rubem Alves: “A memória tem uma função subversiva. (…) Talvez que a memória das esperanças já mortas seja capaz de trazê-las de novo à vida, de forma que o passado se transforme em profecia e a visão do paraíso perdido dê à luz a expectativa de uma utopia a ser conquistada”. Ou, como nas palavras pronunciadas no filme: “Memória é resistência. Um rio encontra outro rio, a vida é mar”.

* Claudio é pastor e teólogo, Magali é jornalista. Ambos integram o Coletivo Memória e Utopia.

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *