“As fugas do sagrado e o paradoxal cuidado dos profanos”, por Kleyton Gualter de Oliveira

O filme “O Milagre” (“The Wonder”), mostra o drama de Anna O’Donelle, uma jovem que alega não precisar se alimentar, sendo movida pelo “maná do céu”, citado na Bíblia. O que talvez algumas pessoas não saibam é que a autora se inspirou em casos reais ocorridos durante a Era Vitoriana. A situação era conhecida como “garotas jejuadoras”, moças alegavam não precisar comer, por serem movidas apenas pela fé.

O filme “O Milagre” coloca em evidência um processo histórico em que muitas crianças e adolescentes foram levadas a jejuns prolongados na Era Vitoriana, tendo como base um pensamento religioso, baseado na fé cristã. A estrutura do filme compartilha situações relacionadas às diferentes formas de educação, realçando as pressões sociais que crianças, adolescentes e jovens enfrentam durante as suas jornadas terrenas. 

A temática “formas de educação” é o conectivo entre “O Milagre” e outro filme, “Sementes podres”, a partir do recorte de quando os pequenos humanos são mergulhados em molduras do pensamento radical dos adultos. Em relação ao filme “Sementes podres”, destacam-se alguns aspectos do território Iraniano. Inicialmente, mostra duas crianças, uma cristã e outra mulçumana, que se conhecem em um orfanato, tendo assim que superar as divergências para viverem a ajuda mútua. 

Dentre tantas especificidades dos dois filmes, gostaria de destacar  “a fuga” como ato consciente ou inconsciente de sair dos processos enjauladores dos corpos e das mentes. O ato de encarcerar aparece nos dois filmes contracenando com o paradoxal cuidado de alguns adultos, inicialmente, considerados profanadores. Fato é que não se adequavam às sagradas estruturas sociais do contexto e as considerava opressoras, inclusive descobrindo barbáries ocorridas e invisibilizadas.

O ato de fugir não necessariamente precisa ser descrito como sair de um lugar. Por isso, a fuga pode ser o distanciamento de algo ruim, abusivo ou constrangedor, fato descrito no filme “Sementes podres”, particularmente no trecho em que as duas crianças fogem do orfanato, uma pelo suicídio e outra com o auxilio de uma freira.

Com esta ótica, mergulhar sobre as organizações humanas na história nos condiciona a pensar o quanto insalubres são as relações condicionadas pelo extremismo. Assim, os roteiros dos dois filmes entrelaçam vidas e sentimentos, proporcionando reflexões sobre aqueles que fogem de lugares extremamente adoecedores, descortinando as percepções sobre a existência de crianças, adolescentes e jovens que buscam instrumentos de fuga, após intermitentes pedidos de socorro, geralmente inaudíveis aos ouvidos dos adultos. 

Existem milhões de apátridas em todo o mundo. Eles e elas são quase invisíveis ou pouco conhecidos pelo restante do mundo. Juracy Marques nos convida em “Educação Descontextualizada: desexplicando as explicações” a pensar sobre como é estar em um não lugar, fugindo de culturas “onde se pratica o infanticídio, a mutilação clitoniana, a dilapidação humana, a pena de morte”, de lugares em que a estrutura e as opressões entraram no conjunto da “normalidade” e com isso, conclama à reflexão sobre qual seria o sentido de lugar para estes seres sem pátria. E o que ouviríamos se fosse dada a voz às crianças envolvidas em tais situações de barbárie e extermínio? 

A partir das inquietações de Juracy Marques, questiono: Qual o papel da educação em tais contextos? Para além do processo de formação intelectual, o filme “Sementes podres” pulveriza a ideia de enfrentamento criativo dos contextos sociais totalitários pelo cuidado, denunciando incidentes de violência quando ocorrerem e mantendo a premissa de que profanadores cuidam e são díspares ao status quo imposto pelo sistema social que estão envolvidos. 

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