Ah… o tempo. Eu tenho conseguido, não sem pequenos resquícios de culpa, reunir trabalho e ócio (talvez, o criativo, como nos mostrou Domênico de Masi), mesas com amigos e amigas rodeadas de lembranças, afetos e compromissos, esforços pela justiça, ainda que poucos e limitados, e o vívido sentimento de “servo inútil”, que a profecia bíblica nos interpela a viver.
Assim, vou me posicionando naquela sinuosa plataforma de “perder” tempo com tarefas e atividades, boa parte delas que não reúnem grande importância social, perspectiva de lucro ou eficiência… Caetano Veloso, em sua “Oração pelo tempo”, já nos indicara que ele é …
Se vivido em sua intensidade e na autenticidade da vida, o tempo nos revela que ser de “carne e osso”, com sangue fervendo nas veias e o sentimento à flor da pele, é o dado mais real que temos para considerar em cada minuto vivido. Poucos conhecem a canção “Carne e osso”, interpretada por Zélia Duncan, que é uma verdadeira aula de teologia:
É que vivemos, na administração dos instantes, a tentação de não sermos humanos! Para alimentá-la, o passar do tempo quase sempre é a prisão do cronos e, quase nunca, a pulsão libertadora do kairós. Ah, como é radiante aquela força, que emerge com uma dimensão escatológica presentificada, valorizadora da vida, um tempo messiânico que surge do interior do cronológico, lapidando-o e o transformando internamente; mostrando o “tempo que nos resta”, como bem nos revelou o renomado filósofo italiano Giorgio Agamben.
É bem verdade que “falar é fácil”, pois, não obstante as atividades no campo da pesquisa e da produção do conhecimento, eu desfruto, agora, daquele tão desejado período da aposentadoria. Posso, então, me dar o luxo de dormir a qualquer hora do dia, ir ao cinema a tarde em pleno dia de semana, escrever e possuir ideias soltas, fazer e errar cálculos de situações improváveis, caminhar sem direção nem propósito, enquanto perco a conta das árvores que me ultrapassam.
O psicanalista Hélio Pellegrino, cujos escritos marcaram a minha juventude, nos diz com maestria:
E, mais do que isso, o livre desfrutar do tempo nos move a discernir os caminhos percorridos e os a serem trilhados. Com eles, estão os fracassos, as doideiras, os pensamentos e ações ocultas, as possibilidades, os medos e os desejos mais profundos, incluindo os inconfessáveis. Bom, justo e agradável é saber que há “tempo de buscar, e tempo de perder; tempo de guardar, e tempo de lançar fora” (Eclesiastes 3:6). E, também, ter no coração e na mente o que diz a mesma canção:
Tudo isto sabendo que “Bom e justo é o Senhor, (…). Ele conduz os humildes na justiça e lhes ensina o seu caminho. Todos os caminhos do Senhor são amor e fidelidade” (Salmo 25. 8-10). E, assim, eu dou os meus passos, parando no tempo, caminhando nas horas, voando no pensamento… E a canção do Milton Nascimento não sai de minha mente:
Tais movimentos me fazem recordar algo crucial em minha vida. Como muitos sabem, no final de 2015, com apenas cinquenta e três anos de idade, realizei uma delicada cirurgia cardíaca, na qual “ganhei” pontes de safena.
Naquela oportunidade, por intermédio de uma aventura espiritual profunda, eu busquei elementos que julgava serem importantes para atravessar aquela situação difícil. Como em um filme, fui atrás das bases e dos momentos que marcaram a memória, meus valores e minha trajetória de vida.
Confesso, desde já, que nenhuma das fontes em que eu havia bebido, na mais da metade de século, já vivida pareceu-me suficiente para enfrentar a situação que estava diante de mim. Não se trata de uma completa aridez ou sequidão espiritual, mas de uma incompletude, de uma carência, de uma inquietude, de um tempo fora dele mesmo. É como na expressão bíblica:
Aí, muitos instantes vão se fundindo, muitos lampejos vão se cruzando. Com o passar do tempo, a noção de liberdade vai se tornando mais aguda. Sem falar, quando estamos diante da oportunidade de repensar a vida diante da morte. Dessa forma, sempre me marcou por demais a noção de carpe diem. Rever a vida, tendo como foco a autenticidade, o ser “nós mesmos”, não como fúria individualista, mas voltada e aberta para o outro, como sujeito de alteridade e de relações afetivas. Dar ao tempo o seu próprio tempo, com todo mundo que ao redor dele se ajunta, se reúne, se encontra e se desencontra. É doação da vida como expressão de amor, de felicidade e de sentido.
Novamente, Milton Nascimento, com “Certas canções”, nos mostra caminhos graciosos de espiritualidade, que nos alumiam a estrada, redimensionam o tempo e nos cortam por dentro:
Assim, no tempo prazeroso, inseguro e incerto, no vazio e no pleno, no horário e fora dele, na confiança no Deus da Vida, tenho seguido o meu caminho…