Olhando despretensiosamente os canais de filmes, me deparei com o título Um conto chinês, filme argentino (Um cuento chino), dirigido por Sebastián Borensztein. O enredo me cativou. Entre drama e comédia o filme traz uma lição de alteridade, humildade, amor e entrega. Entregar-se ao outro para ajudar e para ser ajudado. Percebe-se, então, que solidão não é para nós, o quanto nos é importante a presença do outro.
O encontro inusitado de Roberto, um veterano da guerra das Malvinas, e Jun, um chinês que não falava espanhol, mostra como as semelhanças podem superar as diferenças – ou como as diferenças podem enriquecer as semelhanças. A trama acontece na Argentina. Roberto, que é dono de uma pequena loja de ferragens – homem sistemático, rabugento, solitário, resistente às mudanças, porém com forte instinto de solicitude – vê Jun sendo jogado de dentro de um taxi. O jovem chinês fora assaltado e estava perdido.
Desesperado, ele tenta se comunicar com o veterano e mostra-lhe um endereço. Roberto o leva até o destino indicado e descobre que lá vivia um tio de Jun, porém havia se mudado e o novo morador não sabia o paradeiro dele. Roberto recorre à embaixada chinesa que prometeu ajuda para encontrar algum parente do jovem, no entanto, não oferecia nem dinheiro e nem estalagem, Jun estava por conta própria. A situação dele era tanto de um cidadão, quando na embaixada, quanto de um estrangeiro, quando nas ruas argentinas.
Remete-nos ao homo sacer, figura do direito romano que Agamben (2010) relaciona àquele que está banido de toda esfera de proteção, tanto a dos homens como a dos deuses. O filósofo indica que existem figuras como a do homo sacer em todas as sociedades, desde a antiguidade até a contemporaneidade, que simbolizam o abandono, desde os judeus nos campos de concentração, os refugiados, como também aqueles discriminados, como a mulher, o negro, o pobre, o estrangeiro etc.. Estas se tornaram elementos primordiais de expressão das artes – como as cinematográficas – sobre as várias violências, inclusive as institucionalizadas.
Jun é uma dessas figuras, negligenciado tanto pela polícia local, como pela embaixada. Sobre essas novas figuras de pessoas “destituídas” de seus direitos, gerenciadas pela biopolítica, por um mecanismo de inclusão/exclusão, Agamben também desenvolve os conceitos de “bando” e “abandono”. Para ser abandonado antes seria necessário pertencer a algum lugar, ou ao “bando” de origem. Assim, mesmo “excluído”, mantém relação ou laço de pertencimento com o “bando”, porém, estaria à “mercê de quem o abandonou”, numa condição de indeterminação, “é esta estrutura de bando que devemos aprender a reconhecer nas relações políticas e nos espaços públicos em que ainda vivemos” (AGAMBEN, 2010, p. 117). Nesse cenário, Jun está em uma zona limiar, que sem a linguagem – que estrutura a vida e o mundo humano, sendo aspecto ligado diretamente ao domínio (dominar ou ser dominado) – torna-se sujeito passivo, sem expressão.
Jun estaria em completo abandono sem a ajuda de Roberto. Mesmo contrariado, o veterano leva o chinês para a sua casa. A convivência foi difícil, tanto pela falta de comunicação como pela falta de paciência de Roberto, que estava acostumado a viver sozinho. Apesar das diferenças culturais e idiomáticas, os dois tinham em comum a tristeza pela perda de alguém que amavam: Jun perdeu a noiva em um acidente durante um passeio de barco, quando uma vaca foi lançada de um avião por ladrões de gado (fato verídico que inspirou a história do filme). Roberto perdeu o pai. Ele só soube da morte dele quando voltou da guerra, e não ter se despedido dele era uma situação que o afetava profundamente.
Os dois personagens têm modos diferentes de enfrentar a dor, o veterano se fechou em seu próprio mundo, cheio de manias, desconfiado, não dava abertura para relacionamentos, por isso vivia isolado. Em contrapartida, Jun não teve medo de se aventurar em outro país em busca de um recomeço, ele é a representação da esperança, esta avivada pelo desejo de mudanças, que revela uma consciência crítica que não apenas espera, mas que busca por coisas melhores. O desenho de uma vaca feito na parede pelo jovem – ele gostava de desenhar e, na China, trabalhava como artesão – desperta em Roberto uma transformação, uma vontade de trilhar novos caminhos. O desenho do animal lhe remeteu à Mari, personagem que nutre uma grande admiração e atração por ele. Ela morava em uma fazenda, onde criava animais e ele vai ao encontro dela.
Roberto passa a ver a si mesmo através de Jun e ao aceita-lo e compreendê-lo passa também a aceitar e compreender a si mesmo, uma relação de eu-outro. Em termos literários, isso se dá pela exotopia, ideia trabalhada por Bakhtin que diz respeito às limitações do eu em ver a si próprio de forma completa, assim como o outro não pode ver a si mesmo plenamente: “Quando contemplo um homem situado fora de mim e à minha frente, nossos horizontes concretos, tais como são efetivamente vividos por nós dois, não coincidem”, na impossibilidade do eu ver integralmente a si próprio, é pelo excedente de visão do outro que ele se constitui. “Quando estamos nos olhando, dois mundos diferentes se refletem na pupila dos nossos olhos”. Dessa forma, a alteridade tem um papel fundamental, pois o “eu-para-mim” se constrói a partir do “eu-para-os-outros” (BAKHTIN, 1997, p. 27).
Com as palavras nos afirmamos como indivíduos, mas também com as ações. Jun não tinha as palavras, pois sem conhecimento da língua não conseguia se comunicar; Roberto não conseguia sair de dentro do círculo que ele mesmo criou como rotina. Ao se unirem, ajudaram-se mutuamente. Roberto foi a voz de Jun no país estrangeiro, Jun foi a motivação para Roberto agir e reconstruir sua vida. Para uma ocasião despretensiosa, creio que a experiência de assistir ao Um conto chinês se tornou surpreendentemente enriquecedora. Semelhança e diferença não se anulam, ao contrário, ampliam horizontes, onde alteridade e empatia são as norteadoras dos sujeitos.
Referências
AGAMBEN, Giorgio. Homo Sacer: O poder soberano e a vida nua. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2010.
BAKHTIN, Mikhail. Estética da Criação Verbal. Tradução Maria Ermantina Galvão Pereira. São Paulo: Martins Fontes, 1997.