“Solto a voz nas estradas…”, por Cláudio de Oliveira Ribeiro

Vou seguindo pela vida
Me esquecendo de você
Eu não quero mais a morte
Tenho muito o que viver

Vou querer amar de novo
E se não der, não vou sofrer
Já não sonho, hoje faço
Com meu braço o meu viver

(“Travessia”, Milton Nascimento)

Uma roda de amigos e amigas, o violão e muitos sonhos… Com aquela inesquecível introduçãozinha, a canção “Travessia” não poderia faltar em nossos inumeráveis encontros. Éramos quatro amigos que, na casa dos dezoito anos de idade, saindo do interior do Estado, vieram para a cidade maravilhosa do Rio de Janeiro, em 1981, para estudar. E o faziam com muito afinco, mas sempre acompanhados de muita festa, gente querida por perto, em um infinito ‘entra-e-sai’ de pessoas de vários cantos. E o melhor: música ao vivo e em cores, lanchinhos que a gente mesmo preparava e as longas conversas sobre o que a vida nos apresentava. 

Não por acaso, alguém denominou o nosso apartamento de “Terra Santa” e, para parafrasear o texto bíblico, muitos pisaram nela sem as sandálias. Afinal, amizade, despojamento e autenticidade são valiosos tesouros que descobrimos desde aquela época e vivemos até hoje às custas dos rendimentos desse rico investimento. 

Por duas ou três vezes na semana, seja no horário nada convencional das 17h, seja no final das noites e, muitas vezes, madrugada adentro, o Paulo Roberto, que entre nós era quem tinha o melhor dom de dedilhar as cordas, magicamente, estava com o seu violão e todos nós, ao redor, pedindo as canções, rindo das histórias, reforçando as utopias e os laços de amizade. Foram anos de muitas descobertas, aprendizagem e preparo para o futuro. Este, não imaginávamos como seria exatamente, mas tentávamos intuir, ao menos nos planos mais positivos, dentro do que sonhávamos e planejávamos para o país, para a igreja e para as nossas vidas. 

Era o tempo do movimento das “Diretas Já”, das passeatas e manifestações políticas no circuito Candelária-Rio Branco-Cinelândia, do “Plano para a Vida e Missão da Igreja Metodista”, das letras teológicas inquietantes de Rubem Alves, Leonardo Boff e tantos outros, quando vislumbrávamos a democracia, a ação social crítica, a participação ampla das pessoas nos destinos das instituições e a pavimentação da estrada para a realização mais eficaz do amor-serviço aos que sofriam. O violão e a roda de amizade em torno dele, lá em casa, emolduravam estes e tantos outros desejos que tínhamos, e nos ajudavam a descobrir caminhos libertários de realizá-los, ainda que em meio às nossas próprias ingenuidades, ambiguidades e contradições. 

Esse pequeno trecho da longa ‘travessia’ de nossas vidas reunia, entre tantos copos e livros, bases profundas de nossos valores, motivações e das posturas que fomos assumindo ao longo de nossas trajetórias. Claro que somadas ao que nossos pais nos ensinaram e ao que aprendemos na igreja, nas experiências ecumênicas, nas ações políticas, nos estudos e nos cantos da vida. 

O renomado pensador italiano Giorgio Agamben já nos lembrara que filosofar e cultivar amizades são atos inseparáveis. Estão ligados até mesmo no nome deste nobre conhecimento (philo-sophia). Em O que é o contemporâneo e outros ensaios, ele nos mostra que na

… sensação de existir insiste uma outra sensação, especificamente humana, que tem a forma de um com-sentir a existência do amigo. A amizade é a instância desse com-sentimento da existência própria. Mas isso significa que a amizade tem um estatuto ontológico e, ao mesmo tempo, político. A sensação do ser é, de fato, já sempre dividida e comdividida, e a amizade nomeia essa condivisão (p. 15). 

E a cada canção entoada naquelas rodas, iam e vinham muitas imagens, compartilhadas no tom do carinho e do afeto. Creio que seja assim sempre que a gente canta ou ouve uma canção. A amizade desfrutada no entremeio daquelas músicas lançou pilares fecundos de nossa visão política, pastoral e humana. 

Não seríamos nós hoje se não fossem aqueles tons. Eles nos jogavam para um ‘salto no escuro’, experiência fundante das realizações humanas mais plenas, potentes e autênticas. Sim! Aquela que mistura felicidade, prazer, medo, tropeços, fracassos. Não, os “sonhos feitos de brisa, [pois] o vento vem terminar”, mas os mais esvoaçantes e forjados na confiança mútua, no entrelaçamento plural de ideias, no dar a mão a quem está ao nosso lado, na força da amizade e da solidariedade …

Aquelas canções, mesmo sem termos tanta consciência disso, refinaram a nossa fé. Rubem Alves, naquele fabuloso livrinho O que é religião, nos chamara a atenção para este inquietante movimento:

Como o trapezista que tem de se lançar sobre o abismo, abandonando todos os pontos de apoio, a alma religiosa tem de ser lançar também sobre o abismo, na direção das evidências do sentimento, da voz do amor, das sugestões de esperança. Nos caminhos de Pascal e Kierkegaard, trata-se de uma aposta apaixonada. E o que é lançado sobre a mesa das incertezas e das esperanças é a vida inteira (p. 101). 

E a fé, que é o salto onde lamento e júbilo se encontram, lutas e prazer se tangenciam e paz e justiça se beijam, chegava e tem chegado até nós. “Quando sou fraco, aí é que me descubro forte” (II Coríntios 12.10). “Quem com lágrimas semeia com júbilo ceifará” (Salmo 126.5). “Mudaste o meu pranto em dança, a minha veste de lamento em veste de alegria, para que o meu coração cante louvores a ti e não se cale” (Salmo 30.11). 

Do coro embalado na hora do “solto a voz nas estradas”, quatro décadas já se foram. Uma enorme teia de experiências foi vivida e nos deitamos nela, com muita satisfação e alegria. Em algum momento, é fato, alguma dor, frustração e inquietação. Porém, ter ouvido as “sugestões de esperança”, como o teólogo encantadoramente acima nos disse, nos deixou sempre muito felizes e realizados. 

Outras rodas de viola aconteceram. Muito trabalho foi e tem sido feito, com determinação, memória e utopia aguçadas. Muita gente querida e de grande valor tem cruzado os nossos caminhos.  

No plano político mais global, temos acumulado muitas vitórias e os fracassos vão sendo registrados, mesmo porque “forte sou, mais não jeito, hoje [ou seja, em algum momento] tenho que chorar”. 

No campo das utopias, “vou seguindo pela vida”, como também diz a canção. Ela é magia pura, encantamento. Ou seja, estamos caminhando, iluminados pela memória que brota da roda destas canções. É a inebriante “travessia”, como na canção: 

Minha casa não é minha
E nem é meu este lugar
Estou só e não resisto
Muito tenho pra falar

Solto a voz nas estradas
Já não quero parar
Meu caminho é de pedra
Como posso sonhar?

E a vida é teimosia. Ela vai se achando na beleza e no mistério de seu próprio labirinto. Ela vai ressurgindo pela fé e pela “coragem de ser”, expressão magnífica, título do livro do teólogo alemão Paul Tillich. A vida é movimento, reconstrução de espaços, de pertenças, de afetos. 

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