“Qual a origem de Deus? – Esboço de uma reflexão existencial sobre o sagrado”, por  Cláudio Roberto dos Santos de Almeida

Uma das perguntas mais frequentes entre as pessoas que se interessam por religião diz respeito à origem de Deus. Este tipo de questionamento foi muitas vezes ignorado ou secundarizado por muitos intelectuais como se expressasse um nível menos aprimorado de maturidade ou algum nível mais elementar de fé. Alguns sábios religiosos, muitas vezes depois de terem perseguido exaustivamente tal resposta, chegaram a uma espécie de silenciamento resignado diante da impossibilidade de resolver tão ampla e profunda questão. Em muitos casos parece que ao fim de uma longa jornada de investidas intelectivas a postura de contemplação e aceitação figura-se como desdobramento mais seguro para muitos indivíduos que se depararam com o avançar de sua própria idade.

Se observarmos de modo aprofundado, a pergunta sobre a origem de Deus não é exatamente um questionamento autoreferente, mas revela um conjunto de preocupações associadas: a origem de toda a teodiceia, o fundamento do tempo, as lógicas da razão e a essência da própria história humana. A pergunta sobre a origem de Deus é uma pergunta sobre a origem da humanidade, e como tal pode guardar em seu próprio princípio lógico a sua resposta. Neste ponto poderíamos nos interrogar como poderia um questionamento tão profundo e existencial guardar dentro de si uma dimensão tão paradoxal – ou mesmo uma certa natureza capciosa.

Um olhar mais aprofundado sobre a trajetória humana, desde suas organizações mais elementares, nos permite notar que o culto religioso esteve associado a práticas coletivas, identitárias e de pertencimento. Os registros de crença e culto religiosos mais antigos retratam uma associação entre as organizações comunitárias (famílias, clãs, aldeias etc); o culto a antepassados (parentes, figuras históricas de destaques) e a própria divinação da natureza por meio da deificação de animais (totens); elementos da paisagem geográfica (montanhas, rios, florestas) e/ou fenômenos naturais, tais como acontecimentos geológicos, climáticos ou astronômicos. Ou seja, aquilo que passou na Modernidade a ser considerado como religião tratava-se de um sistema de crenças e práticas que localizava os indivíduos e grupos numa complexa trama de correlações entre a totalidade do mundo e suas particularidades.

Ao longo da história material que incidiu no Ocidente o desenvolvimento de organizações e relações sociais, implicou também no surgimento de sistemas metafísicos cada vez mais complexos. É possível identificar certa correlação entre o aprimoramento das organizações sociais e o modo como o sagrado passou a ser visto e expresso. Assim, fenômenos como a urbanização; a divisão do trabalho; a organização de modelos centralizados de governo; a sofisticação da guerra; a propriedade privada da terra; e a escravidão, estiveram na base do desenvolvimento de formas específicas de compreender a sacralidade e a natureza humana.

Desde o período Antigo, algumas organizações sociais que viveram a experiência de urbanização, tais como Egito, Grécia, Roma, Suméria etc. as divindades passaram a ser vistas como reflexos do próprio comportamento social e com traços psíquicos que se assemelham ao humano. Assim, é possível notar a existência de deuses amorosos, rancorosos, vingativos, festivos, tristes, introvertidos, intelectualizados etc. Assim como a própria mitologia ensinada é repleta de acontecimentos trágicos provocados por esta natureza quase antropológica dos deuses.

Depois de um longo período de guerras, traições políticas e instabilidade da vida social, as sociedades antigas começaram a assistir ao surgimento de líderes religiosos que defendiam filosofias direcionadas ao aprimoramento ético do comportamento. Estes profetas e messias passaram a acentuar a necessidade de novos padrões de convivência e até mesmo uma nova forma de enxergar a natureza divina. A partir dos ensinamentos de muitos líderes filósofos do mundo Antigo “Deus” se tornou uma entidade fundamentalmente moral. E as bases desta nova moralidade implicavam um remodelamento dos sujeitos no plano de suas experiências com os outros e consigo mesmos.

Na história do Ocidente o cristianismo elevou este projeto moral a um nível muito próprio. Foram estabelecidos os princípios de uma comunidade de fé que em última instância retirava o sujeito do mundo das relações sociais e o confinava numa sociedade semi-secreta e semi-permeável, organizada pela escolha da dedicação exclusiva ao culto e ao trabalho vocacionado. Deus passou a ser considerado um ser cada vez mais difícil de compreender e distante do plano da vida social – que agora passou a ser representada como potencial campo de cooptação para ações que reforçariam o seu contraditório. Nesta concepção, a humanidade passou a ser vista como uma potencial força a serviço do mal, se não estivesse submetida aos preceitos morais da religião revelada.

A partir meados do Século XVI a Reforma Protestante trouxe uma nova roupagem para esta fórmula cristã. O Calvinismo, o Luteranismo e o Metodismo buscaram tornar acessível a leitura bíblica às pessoas não iniciadas, considerar sagrada qualquer modalidade de trabalho (mesmo quando realizada para fins profissionais) e acentuar a possibilidade de uma busca pela salvação fora do isolamento. Isso tudo, porém, mantendo a mesma postura monástica de desconfiança e negação ao universo da vida social entre os não participantes das comunidades de fé. O protestantismo inaugurou a era daquilo que ficou conhecido como “ascetismo intramundano”, uma forma de “estar” no mundo sem a ele “pertencer”.

Muitos filósofos modernos realizaram leituras críticas do cristianismo demonstrando a dimensão alienadora da consciência que estaria por trás das imagens mais aprimoradas de um sagrado que nega o humano. Assim, quanto mais “límpida” fosse a imagem representada de Deus, maior testemunho a humanidade teria de sua própria degradação moral. Na visão destes filósofos a imagem moderna de Deus refletia uma extrapolação de aspectos positivos da própria natureza humana e sua paradoxal admissão de falência num mundo dominado pelo amesquinhamento das relações com o outro.

Nas minhas experiências como pesquisador da religião, quando interrogava os líderes religiosos de igrejas, centros espíritas, terreiros de culto etc. sobre seus principais desafios como sacerdotes, os mesmos apontavam as dificuldades de administrar as relações entre os co-participantes. Os líderes sacerdotais não apenas desempenham tarefas ligadas à administração do culto ao sagrado, mas também precisam garantir a boa convivência e a solidez de suas comunidades de fé. Isto porque as comunidades religiosas não oferecem modalidades de experiência fora do que as relações sociais mais amplas tendem a oferecer. Na igreja, no terreiro, no centro (como em qualquer comunidade religiosa) o iniciado precisará lidar com competição; busca por reconhecimento; privilégios associativos; distribuição de status; inveja e quaisquer outros traços daquilo que nos faz “humanos, demasiadamente humanos”, como diria Nietzsche.

Conforme acentuam muitos pensadores das ciências sociais (Durkheim, Lévi-Strauss, Weber etc.), somente em circunstâncias muito excepcionais é possível observar o culto ao sagrado fora da vida social e da experiência na comunidade. De uma maneira aparentemente irônica, a tentativa de saída de si rumo a um ato transcendental de busca pelo sagrado acaba realocando os indivíduos no seio de uma comunidade religiosa. Nesta nova comunidade o iniciado precisará aprender a conviver de modo eficaz com todos os aspectos comportamentais do mundo que busca negar ou do qual escolheu se proteger. A busca do sagrado nos conduz à descoberta do humano.

Neste sentido a origem etimológica do termo religião como religare, do latim, “reunir”, implica na indicação de que sagrada é a vida com o outro, não a experiência distante da co-presença. Sagrados são os valores que nos permitem conviver adequadamente como participantes de uma experiência social comum. O sagrado é um princípio civilizatório, e nos põe diante da necessária tarefa de nos realizar como sujeitos sociais. A origem de Deus é a origem da vida em comum. Deus não está antes de um tempo que nem é tempo se não for o nosso próprio; não está além de uma razão que não podemos acessar. Não há nada lá fora que precise ser buscado, não há nada cá dentro que precise ser revelado. Como enfatizam as repostas mais sábias à pergunta que deu origem a esta reflexão, Deus é o que é, e se revela na minha relação com os outros. Ele literalmente “está no meio de nós”.

REFERENCIAS

DURKHEIM, Émille. As Formas Elementares da Vida Religiosa. Rio de Janeiro: Martins Fontes, 2002.

ELÍADE, Micea. Tratado de História das Religiões. Rio de Janeiro: Martins Fontes, 2020.

MARX, Karl & ENGELS, Friedrich. A Ideologia Alemã. Rio de Janeiro: Martins Fontes, 2007.

WEBER, Max. A Ética Protestante e o Espírito do Capitalismo. São Paulo: Mantin Claret. 2002.

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