Quando vemos e ouvimos vários pastores e supostos teólogos falar sobre a sexualidade ou a homossexualidade de seus púlpitos, usando clichês vazios e anacrônicos, incitando violência contra as pessoas cuja condição afetivo-sexual difere das suas, pasmos observamos quão longe estão de conhecer profundamente a alma humana e principalmente suas condições inerentes a elas. Não adianta muitas vezes explicar os contextos sociais, psicológicos e científicos, porque esse tipo de pessoa desconhece a apatia, o amor e o acolhimento do diferente. Mas, de qualquer maneira, discorramos um pouco sobre o tratamento iníquo e cruel contra as pessoas LGBTI+.
Primeiramente, entendamos que há duas teorias sobre sexualidade: o construcionismo social e o essencialismo. No construcionismo sexual a sexualidade é socialmente produzida por eventos, forças históricas, tensões, política, relação de poder, movimentos culturais que moldam nossas culturas, sistemas de valores e o cotidiano. Para o construcionismo social, o ser humano se constitui ao se relacionar com o outro e a cada dia se conhece quando interage e acompanha as mudanças. Já o essencialismo reduz a sexualidade a uma essência preexistente, baseada na natureza, caráter, substância, ser absoluto com uma verdade interior fixa e imutável.
Vejamos agora como a proibição e as punições sobre a homossexualidade perpassam séculos. Desde o início do século IV, não somente a igreja proibia a homossexualidade, como o Estado a punia. Desde o século IV as punições contra a homossexualidade começavam de prisão, estrangulamento a fogueira. No Séc. VII, na Espanha, por exemplo, as pessoas homossexuais tornaram-se passíveis de castração se após a primeira admoestação não mudassem de comportamento. Já no século XIII, conforme diz o pensador norueguês Dag Øistein Endsjø:
A sexualidade controlada
O cristianismo passou a controlar os indivíduos através do controle dos seus corpos, da sua sexualidade. Instituíram-se mais fortemente a monogamia, o casamento heterossexual (pois essa sociedade precisava procriar e crescer), e a intensificação da desqualificação dos prazeres, que se instaurara dentro do cristianismo desde o século II.
O cristianismo não produziu o código de comportamento sexual, mas incorporou fragmentos do ascetismo pagão e o adotou, reforçou e intensificou no seu discurso. O projeto de poder sobre a sexualidade desenvolve-se por esses três séculos XVII, XVIII e XIX, constantemente apoiado pelas confissões cristãs e jurídicas. A produção de uma verdade sobre sexo instigada pelos discursos e pela metodologização da ciência sexual. Toda essa abordagem do sexo, quer seja através de cientistas, médicos, pedagogos, religiosos, constituem-se mecanismos constituintes da vontade de saber e de poder arraigados na história do Ocidente.
Surgiram vários manuais de conduta sexual para controlar o prazer da população. Na área sexual havia 16 categorias de pecados, tal como demonstrado por Jean Delumeau, a saber:
As “sexualidades periféricas” como a denomina Michel Foucault, foram incorporadas como perversões e uma nova identificação de indivíduos. No século XIX, “a homossexualidade transformou-se da prática da sodomia em um tipo de androgenia interior, um hermafroditismo da alma. O sodomita havia sido uma aberração temporária; o homossexual agora era uma espécie.” Segundo Foucault, o discurso sobre a homossexualidade desde o século XIX através da psiquiatria e medicina que qualificava as pessoas homossexuais como “espécie e subespécies: homossexualidade, inversão, pederastia e “hermafrodismo psíquico” possibilitou um forte avanço de controles sociais dessa área de ‘perversidade’”.
O médico legista Viriato Nunes, presidente da Câmara de Braga, filho de pais portugueses. Formado em direito pela Universidade de Coimbra, em 1928 afirmou que “Toda perversão sexual atenta violentamente contra as normas sociais.” E exigia rigor na repressão, pois se “esses criminosos (pederastas) têm perturbadas as suas funções psíquicas”, a sociedade não pode permitir-lhes “uma liberdade que eles aproveitariam para prática de novos crimes”. Outro médico legista, Aldo Sinisgalli observou: Ora “o homossexualismo é a destruição da sociedade, é o enfraquecimento dos países”; se ele “fosse regra, o mundo acabaria em pouco tempo”
Quando a Igreja como instituição cristã tenta cristalizar o conceito da homossexualidade como uma ameaça aos “bons costumes” e à “moral”, ela está sendo usada como instrumento de poder sobre sua população, seus membros, já que o poder se dá numa relação entre pessoas, não necessariamente entre o Estado e o povo. O poder se mostra dentro da Igreja quando ela busca conduzir ou direcionar o comportamento de um grupo de pessoas. Neste caso, a condenação do comportamento homossexual, e a tentativa de controle sobre a pessoa homossexual ou a sexualidade dos seus membros.
Reportamo-nos a Judith Butler que se refere a uma violência ética do não reconhecimento do outro.
Não somente o gênero foi construído, como afirma Judith Butler, como as categorias de masculino/feminino como essenciais, verdadeiras e permanentes, quando a incompletude pessoal deve ser levada em consideração. O gênero foi construído para que se creia na sua necessidade e naturalidade e se rejeite todo aquele que não se comporte de acordo com o seu gênero.
Como existe em cada um de nós o desejo de ser reconhecido, uma violência ética ocorre quando uma pessoa não consegue ser reconhecida pelo que é por si mesma ou pelo outro. Assim, o moralista se torna assassino quando condena e transforma o desejo de viver em desejo de morte, destruindo lentamente a condição da própria ética.
A condenação de alguém se torna quase que uma sentença de morte, posto que a destrói eticamente. A função do julgamento por sua vez providencia uma condição sustentável para uma deliberação, julgar inclui promover no outro o desejo de viver. Assim, quando a Igreja com suas normas adquire uma postura ética inflexível, sem reconhecer a incompletude do ser humano e nos seus desdobramentos como ser social, ela o impede de viver.
A pessoa LGBTI+ entra em conflito quando ela precisa se enxergar como sujeito, quando se relaciona a um conjunto de normas impostas e a um julgamento negativo da sua condição afetivo-sexual.
De acordo com Karen Armstrong, “os fundamentalistas cristãos rejeitam as descobertas da biologia e da física sobre as origens da vida e afirmam que o Livro de Gênesis é cientificamente exato em todos os detalhes”. Karen Armstrong também afirma que embora o mundo tenha mudado, as pessoas conservadoras não aceitam essas novas condições e se vêm forçadas a reafirmar suas tradições religiosas.
Não teremos espaço para discorrer sobre os “versículos do horror” contra a homossexualidade, mas quando verificamos várias traduções dos versículos citados pelos fundamentalistas, observamos as diferenças nas traduções pelo fato de ainda nem conhecerem certos termos. Por exemplo, a expressão “homossexual” foi criada em 1848, pelo psicólogo alemão Karoly Maria Benkert. Sua definição: “Além do impulso sexual normal dos homens e das mulheres, a natureza, do seu modo soberano, dotou à nascença certos indivíduos masculinos e femininos do impulso homossexual.”
Um erro constante nas falas repulsivas e violentas de “pastores e teólogos” é de que é “escolha deles”, portanto, façam da sua vida o que quiserem”. Não funciona bem assim: a homossexualidade não é uma opção ou escolha. James B. Nelson afirma: “Embora muita coisa não esteja clara quanto à etiologia da homossexualidade, uma é certa, a de que a orientação sexual não é uma escolha ou opção”. Algumas teorias levantadas por estudiosos da ciência empírica, biológica e geneticistas afirmam que a homossexualidade se constitui algo inerente ao ser humano. E na área sociológica veem a homossexualidade como relação de poder.
AFINAL DE CONTAS, DIREMOS HOMOSSEXUALISMO OU HOMOSSEXUALIDADE?
No Brasil, o Conselho Federal de Psicologia removeu a homossexualidade da lista de transtornos sexuais em 1985. Igualmente, a Organização Mundial da Saúde (OMS) retirou o “homossexualismo” de sua lista internacional de doenças em 17 de maio de 1990. Desde que a Associação Americana de Psiquiatria (1973) retirou a homossexualidade da sua lista de transtornos mentais, iniciou-se um movimento para debater sobre o assunto em todas as esferas: social, científica e religiosa.
Daniel A. Helminiak defende que apesar dos estudos científicos sobre a sexualidade perfazerem não mais de um século, pode-se afirmar uma coisa, que: “a sexualidade pertence ao âmago da pessoa. Sexualidade significa muito mais do que a excitação física e o orgasmo. Ligada à sexualidade está a capacidade de sentir afeto, de admirar a outra pessoa, de se sentir emocionalmente próxima da outra, de se envolver com paixão.” (Daniel A. HELMINIAK, 1998, p. 20).
O geneticista Eric Vilain (2016) declara a dificuldade em classificar ou encontrarem “causas” para a homossexualidade, bissexualidade, transgeneridade ou heterossexualidade. Apesar da preocupação dos cientistas em descobrir a genealogia da orientação sexual, ele afirma como os acadêmicos das ciências sociais que a orientação sexual se constitui uma construção social e que as duas teorias tanto a científica quanto a sociológica podem se complementar.
O teólogo católico Marciano Vidal entende que o homossexual não traz em si “nenhum traço de patologia somática ou psíquica”. Nesse sentido, para o autor, como as explicações plausíveis para o fenômeno da homossexualidade humana ainda se encontram em caráter provisório e precário sobre os fatores biológicos, psicológicos, dados históricos e de antropologia e tratamentos experimentados na psicanálise e terapia do comportamento, não se pode afirmar totalitariamente sobre aquilo que carrega um caráter provisório e precário. Assim, a homossexualidade não pode ser enquadrada como “enfermidade” nem como simples “variante” da sexualidade. Devendo ser considerada tão normal quanto a heterossexualidade. Concluindo, ele declara:
Por muitos anos, higienistas, teólogos, médicos, psicólogos, biólogos, tentam investigar o início ou a “distorção” da homossexualidade. Médicos investigando sobre os homossexuais em 1954, chegaram à conclusão como explicado no relatório Wolfenden Becker:
A condenação da pessoa homossexual (ou da comunidade LGBTI+) pela sociedade e pelo cristianismo acontece numa tentativa de controlar sua diferença de uma normatividade estabelecida em uma sociedade heteronormativa.
Em suma, seria muito pedir aos teólogos e pastores que tomassem muito cuidado quando falam do que não entendem ou quando por um “suposto amor a Deus” ferem ética e psicologicamente, pessoas que tem uma condição afetivo-sexual diferente da sua? Em pleno século XXI ainda cometemos a inquisição, somente que agora não mais com fogueiras, carros ou cavalos puxando cada perna para um lado, e sim versículos bíblicos, diga-se de passagem, mal interpretados e usados de “má fé”, fora do contexto.
Encerro com a diálogo do desejo e a instituição, tão bem descrita pelo filósofo Michel Foucault, num contraste entre desejo e instituição:
Algumas sugestões bibliográficas
BALTHAZART, Jacques. The biology of homosexuality. Oxford: Oxford University Press, 2012.
BETHMONT Rémy; ET GROSS, Martine. (Org.) Homosexualité et traditions monotheists. Vers la fin d’un antagonism? Labor et Fides: Genève, 2017.
CALVANI. Carlos Eduardo. (Org.). Bíblia e sexualidade. Abordagem teológica, pastoral e bíblica. São Paulo: Fonte Editorial, 2012.
FOUCAULT, Michel. História da sexualidade: 1. A vontade do saber. 19. ed. Rio de Janeiro: Graal, 2009.
KATZ, Jonathan Ned. A invenção da heterossexualidade, Rio de Janeiro: Ediouro, 1996.
NATIVIDADE, Marcelo Tavares. As novas guerras sexuais: Diferença, poder religioso e identidades LGBT no Brasil. Rio de Janeiro: Garamond, 2013.
PICCOLO, Fernanda Delvalhas & MACHADO, Maria Das Dores Campos (Orgs.). Religiões e homossexualidades. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2010.
RODRIGUES, Silvia Geruza Fernandes. Sexo, entre a culpa e o prazer: Um estudo do discurso evangélico brasileiro sobre a sexualidade. São Paulo: Fonte editorial, 2012.
SALZMAN, Todd. A; LAWLER, Michael G. A pessoa sexual – por uma antropologia católica renovada. São Leopoldo: Editora Unisinos, 2012.
TREVISAN, João Silvério. Devassos no paraíso:a homossexualidade no Brasil, da colônia à atualidade. 4. ed. Rio de Janeiro: Record, 2000.
VIDAL, Marciano. “Avaliação moral da homossexualidade”. Homossexualidade, Ciência e consciência. São Paulo: Loyola, 1985, p. 107-126.
VILAIN, Eric; BALEY, J. Michael et al. Sexual orientation, controversy, and science. Psychological Science in the Public Interest, v. 17. (2)45-101, 2016.
WINK, W. e Cols. Homossexualidade: Perspectivas cristãs. São Paulo: Fonte editorial, 2008.