Por mais de trinta anos eu observo uma frondosa figueira, que ‘mora’ perto de um lugar onde costumo passar as minhas férias. Ela tinha sido dada como morta, depois de muito desgaste, e teve os troncos curvados, quase tocando o chão. Eles se renovaram, desenvolveram novas curvas, algumas ascendentes, como que procurando o seu próprio topo.
Já me sentei aos seus pés por numerosas vezes. Já vi o meu filho Guilherme, quando criança, subir naqueles tortuosos troncos, dando oportunidade, inclusive, para uma das mais lindas fotos que já registramos dele.
Na companhia daquela árvore, por diversos momentos, já me encantei com pequenos barcos que por ali atracam. Muitas vezes, sob o reflexo da lua e dos rastros dela nas águas da lagoa que circunda a frondosa árvore, troquei ardorosos beijos e excitantes abraços. Esta árvore nos revela a grandeza e a profundidade da vida e os instigantes mistérios da fé.
Mais uma vez, a linda canção nos fala bem de perto:
Quando olho para os troncos, arcados e cansados, desta quase invencível figueira, lembro-me do meu próprio corpo. De dores que tive, de tristezas que vieram, de lágrimas que correram no rosto e de perdas que me fizeram curvar e quase cair. O meu próprio tronco sustenta um coração já cortado e aberto para que a vida fosse renovada e garantida. Sim! As minhas safenas não me deixaram cair, assim como a força misteriosa e divina da vida não permite que esta árvore tenha vindo a sucumbir. Ela se mantém firme. É como se fosse uma atualização ecoteológica da profecia bíblica messiânica que afirmara que “ele se manterá firme, e apascentará os povos na força e majestade do Senhor” (Miquéias 5.4).
Rubem Alves, em Variações entre a Vida e a Morte, já nos lembrara, com o veio poético que lhe é peculiar, que:
E o olhar, ainda voltado para a firmeza e a beleza dos encurvados troncos, vão, generosamente, fitando a força das pessoas mais pobres e sofridas que lutam para sobreviver, para ter um trabalho, um alimento, os direitos respeitados, e ter um sopro de esperança. Sim! Gosto de contemplar aquela árvore. Ela me faz recordar das adversidades que cada um de nós tem enfrentado ao longo dos anos.
É tanta gente que conheço, cujos nomes balbucio diariamente em orações e preces, que se sente curvada diante da dureza da vida, da insensibilidade de ex-governantes do nosso país e suas necropolíticas, das diversas dores e sofrimentos, mas “não se cansa e não se fatiga”. Ao contrário, com força, fé e coragem, sem medo de ser feliz, “corre com asas como águias”, como expresso na belíssima profecia bíblica (Isaías 40.31).
As pessoas que não se dobram diante dos arroubos dos autoritarismos, ou não se deixam se levar pela desesperança, que se sentem empoderadas para alterar os rumos de suas vidas, as que lutam contra o câncer, contra a depressão, contra os prognósticos médicos, as que enfrentam os maridos, confrontam os seus pastores, as que lutam pela paz e pela justiça, as que seguem “com a mania de ter fé na vida”, como diz a canção “Maria, Maria”, de Milton Nascimento, são concretos fragmentos semelhantes a esta teimosa árvore. Raízes profundas, escondidas “em três medidas de farinha”, como diz o Evangelho (Mateus 13.33)
Ao olhar o vigor daquela árvore, devidamente acompanhado do clamor das pessoas que com ela se assemelham, vamos por aí esperançando. Com o coração ardente e com os pés firmados no chão da vida, seguimos entoando outra canção, com a voz de Ivan Lins no coração: “Com força e com vontade, a felicidade há de espalhar com toda a intensidade”.
A imagem desta árvore nos revela que é preciso seguir firmes na louca tarefa de acreditar na vida; na busca permanente e incansável de raízes profundas da fé que nos fazem “transportar montanhas”. Como na linda canção, é preciso lembrar que
A insensibilidade humana, a diminuição da força das visões utópicas e as culturas de morte e de violência, reforçadas, lamentavelmente, por grupos e pessoas que governaram o nosso querido Brasil e que ainda estão soltos por aí, não terão a última palavra. A paz e a justiça se beijarão mais uma vez (Salmo 85.10). E “permanecerão a fé, a esperança e o amor” (I Coríntios 13.13). Aí, seguimos cantando e sonhando…
A tranquilidade e a sabedoria expressas nesta canção não omitem a força e a coragem que brota lá de dentro do nosso peito. Um desejo profundo, um movimento, uma “força estranha no ar”, como nos en-canta Caetano Veloso… É o ânimo que sustenta a vida, quebra a petulância dos que se acham fortes e sábios, coloca limites aos violentos, renova o nosso ser e toda a criação.