Não é fácil para quem tem a rigorosa formação protestante crer na salvação pela graça. Parece contraditório, mas é assim mesmo. O teólogo Rubem Alves, entre outros visionários, já havia nos dito esta pérola repetidas vezes. A Palavra “pela graça sois salvos, e isto não vem de ti, é dom divino” (Efésios 2.8-9) é inquietante, disruptiva e, até mesmo, dilacerante. Ela joga por terra as rígidas regras, os moralismos falsos e verdadeiros e a vivência religiosa ensimesmada e legalista.
E quando também passamos pelo rigor dos referenciais éticos e do imediatismo das visões políticas da esquerda, como é o meu caso, é mais difícil ainda se jogar nas redes da graça. Afinal, repetimos tantas vezes a conhecida canção “Quem sabe faz a hora, não espera acontecer”, que quase sempre não deixamos “a vida nos levar”. Aliás, enquanto escrevo estas palavras, por coincidência ou por convergência de sentidos, ouço o altíssimo rádio do vizinho com esta canção, “Deixa a vida me levar”, muito popular e expressiva. Se me dissessem que ela foi retirada da Bíblia, eu acreditaria. Escutem:
Olhem aí a salvação pela graça! O olhar gratuito, a entrega, o congraçamento. Ela mesma, que “excede toda a nossa compreensão” (Filipenses 4.7)! E percebam na mesma canção o dado testemunhal, marcante, significativo para tanta gente neste mundo de Deus:
Terá sido eu o autor desta canção? Terá sido você? Ou tantos caminhantes das veredas tortuosas que estão por aí? Ou ainda os que sofreram a dor das desilusões, das violências domésticas, dos arroubos autoritários, das discriminações, da fome?
Esperar a “guarida”, sob os fios tênues da graça, não é individualismo ou aburguesamento dos valores. Também não se trata de inércia insensível ou de não se sentir tocado pelo sofrimento alheio e pelas responsabilidades decorrentes disto. Trata-se de viver na corda bamba da fé, desfrutar da vida imerecidamente, juntar despojamento e alegria, acolhimento dos desígnios divinos e ação proativa e solidária em favor da confluência da graça e da verdade e também da paz e da justiça, esperando o dia em que elas se beijarão (cf. Salmo 85.10).
Movido por esta ideia, eu escrevi, logo depois de ouvir a referida canção, um pequeno texto, em mídia social, inspirado na imagem de uma criança indígena deitada com tranquilidade e segurança numa rede. Ela, com os olhinhos serenos, confiava o seu pequeno e frágil corpo àquela rede, àquela trama, à graciosidade da vida. Para o referido texto, que realçava a indescritível experiência diante do dom salvífico, eu conferi o convidativo título: “Para quem já se deitou numa rede pelo menos uma vez na vida”.
Deitar na redes da graça… como o velho teólogo inicialmente referido nos convidava. “Chorar com os que choram e se alegrar com os que se alegram” (Romanos 12.15). Sim! A graça! Suficiente para nós, e na qual o poder-serviço de Deus se aperfeiçoa, na nossa fraqueza (Cf. 2 Coríntios 12:9), como foi na inquietação da pandemia, ainda tão presente em nossas mentes, na letargia, na solidão, na dor dos desempregados e desamparados deste mundo.
Porém, não nos esqueçamos que a graça também se aperfeiçoa nos momentos de prazer, de gozo, de êxtase, de transbordamento de alegrias e satisfação, na magia das danças e dos cultos, na graciosidade das crianças, nos sonhos da juventude e dos idosos, no empoderamento das mulheres, das Marieles, das Margaridas que florescem em vários cantinhos por aí.
Recordo-me que, naquele mesmo dia, depois de horas de intenso trabalho, caminhei, no cair da tarde, à beira de uma grande lagoa, com barcos, aves e árvores ao redor dela. Eu parei para contemplar aquele quadro, criado e recriado por quem me sonda e me ama, gratuita e incondicionalmente. Alguém que me deixa livre e as vezes segue meus passos, se revela e se esconde. Um jogo! Um jogo de contas de vidro, como intuiu Rubem Alves, em suas ‘Variações entre a vida e a morte’. Aliás, como já mencionei em vários outros escritos, eu já estive certa vez entre elas, e já vi muita gente nesta corda bamba da existência humana.
Naquele momento, ao olhar um pequeno barco, me veio à mente a antiga canção do grupo Vencedores por Cristo, que tantas vezes sussurrei desde a adolescência, agradecido e deslumbrado com o dom da vida:
É fato que não sabemos exatamente onde. Ainda mais em tempos de incertezas e de vulnerabilidade da vida… No entanto, o sentimento/intuição/desejo é o de debruçar na louca visão daqueles que “confiam no Senhor e renovam as suas forças” (Isaias 40.31), pois, como cantamos com Gilberto Gil: “andar com fé eu vou que a fé não costuma ‘faiá’”.
As insanidades, a crueldade e a insensibilidade de governos que tivemos, ou a lógica de violência dos fortes grupos econômicos, não nos roubarão a paz. Ela beijará a justiça. Ela fará correr um rio cristalino de amor e de esperança. Ela dará poder aos pequenos e desvalidos.
Olhar aquela imagem encantadora, a qual me referi, de barcos, aves e árvores, me deu vazão para sentir “uma força estranha no ar”. Sim! Aquela que “me leva a cantar”, como na canção de Caetano Veloso, “uma voz tamanha”. O quadro é da autoria de alguém que deixa “o dia discursar a outro dia e a noite revelar conhecimento a outra noite” (Salmo 19.2). É de alguém que dança, que ri, que ironiza as nossas falsas pretensões. … Que “derruba dos tronos os poderosos e despede vazios os ricos”; sonho presente na canção de Maria, narrada no Evangelho de Lucas.
E a noite foi chegando… “Leve, como leve pluma, muito leve, leve pousa. Muito leve, leve, pousa”, como expressa a linda canção “Amor”, de João Ricardo e João Apolinário. O título não poderia ser mais bem escolhido! Ela foi magicamente interpretada pelo irreverente conjunto Secos e Molhados, que “bailava com as corujas e pirilampos” e embalou a minha adolescência.
E “do dia ao fim, após os seus lidares”, como no tradicional hino religioso, eu fui lembrando das coisas boas da vida, das dores e amarguras também, dos “prazeres e pesares”, depondo, nas mãos de quem criou aquele quadro que eu avistava, a dor que marca as nossas vidas.
Eu segui aquele caminho, já no escuro da noite, desejando que as pessoas sejam curadas e libertas de seus percalços. Segui sonhando que os governantes [daquela época], tão cruéis e violentos, fossem afastados, que a tragédia e o sofrimento das guerras acabassem e, como na inesquecível canção “Bandeira do divino”, de Ivan Lins e Vitor Martins, “que o perdão seja sagrado, que a fé seja infinita, que o homem (e a mulher) sejam livres e que a justiça sobreviva”.