“Uma apresentação: Ou, minha declaração de amor”, por Jorge Pinheiro

O humano é responsável pelo ontem, pelo hoje e pelo amanhã. É na construção escolhida ou imposta, e na sequência dela, que cada um, que cada uma constrói a comunidade humana. As realidades imanentes e transcendentes são vaidades e correr atrás do vento quando é descartado o papel humano de cada dia. Por isso, a teologia exorta à crítica o espírito de religiosidade e chama à liberdade do livre espírito: pensar a imposição para construir além dela.

“Hamlet observa a Horácio que há mais cousas no céu e na terra do que sonha a nossa filosofia. Era a mesma explicação que dava a bela Rita ao moço Camilo, numa sexta-feira de novembro de 1869, quando este ria dela, por ter ido na véspera consultar uma cartomante; a diferença é que o fazia por outras palavras”. (Machado de Assis, A Cartomante).

Palavras. Os cristãos acreditam que o universo foi feito pela palavra, o logos joanino. Acreditam que a palavra tem poder, daí que seja o seu sim, sim, e o seu não, não. Mas Machado de Assis nos diz que se faz também por outras palavras. Dessa maneira, o criar e o fazer não são iguais porque as palavras são diferentes.

Ah! Mas são sempre os mesmos temas: o amor e o desamor, a distância e a saudade, o tino e o desatino, por exemplo. Talvez, mas a diferença é que se faz por outras palavras. E tudo muda…

Grato, não piegueiro. A dizer obrigado porque as contingências não fumegaram o pavio. Lá atrás, o garoto anda pela calçada sem saber que a vida vai além do meio fio, que há lados. E ao atravessar a Rua do Catete as ladeiras sobem em direção à graciosa Teresa. Mas sabe que de carrinho de rolimã se desce mais rápido, da Glória em direção ao Lartigau, cheio de geometrias art-déco, ali, quase na taverna, embora os pneus fiquem à altura da cara.

E lá na frente o mar. O veleiro. A liberdade, aprendida com Walter, é negociar com os elementos. Ventos e marés. Diante das mareações, a marinharia aqui faz, junto do tio, o menino livre.

Apresento a teologia humana. E o faço a partir de Machado de Assis, porque fazer teologia é degustar prazeres. Não se faz às correrias, com sofreguidão. É ato delicado, caminhar por palavras, dançando com elas pelo universo em construção.

É interessante que Paulo, o apóstolo, diz que somos poiema do Eterno. Poiema, do verbo grego poieo, que deu em português poema e poesia, significa aquilo que é fabricado, produto, projeto de um artesão. Assim, na teologia, logos e poieo andam juntos.

Por isso, na teologia, a paixão aproxima, porque é sempre logos e poieo nos diferentes momentos. Que você possa curtir prazerosamente no humano as palavras, as outras palavras, que nos trazem diferentes construções e universos.

Agradecido porque fazer teologia virou sina. O menino lá de trás atravessou o tempo, os jeans, camisetas, cabelos arrepiados, e caiu aqui, do outro lado da vida, em Montpellier. Tempo de logos e poieo, o garoto de antes vê a plenitude, os sorrisos e os parabéns que a transcendência montou.

Voltando a Machado: ele fala de palavras mal compostas, palavras decoradas, palavras sussurradas, palavras que se bebem, palavras que reboam, palavras secas, palavras afirmativas, palavras vulgares…

“Como daí chegaram ao amor, não o soube ele nunca. A verdade é que gostava de passar as horas ao lado dela; era a sua enfermeira moral, quase uma irmã, mas principalmente era mulher e bonita. Odor di femina: eis o que ele aspirava nela, e em volta dela, para incorporá-lo em si próprio. Liam os mesmos livros, iam juntos a teatros e passeios. Camilo ensinou-lhe as damas e o xadrez e jogavam às noites; — ela mal, — ele, para lhe ser agradável, pouco menos mal. Até aí as cousas. Agora a ação da pessoa, os olhos teimosos de Rita, que procuravam muita vez os dele, que os consultavam antes de o fazer ao marido, as mãos frias, as atitudes insólitas. Um dia, fazendo ele anos, recebeu de Vilela uma rica bengala de presente, e de Rita apenas um cartão com um vulgar comprimento a lápis, e foi então que ele pôde ler no próprio coração; não conseguia arrancar os olhos do bilhetinho. Palavras vulgares; mas há vulgaridades sublimes, ou, pelo menos, deleitosas. A velha caleça de praça, em que pela primeira vez passeaste com a mulher amada, fechadinhos ambos, vale o carro de Apolo. Assim é o homem, assim são as cousas que o cercam”.

A aparente simplicidade de A Cartomante, publicado originalmente na Gazeta de Notícias, no Rio de Janeiro, em 1884, é típica de Machado. Talvez essa seja a grande lição do mestre: traduzir o humano com aparente simplicidade. É, digo aparente simplicidade, porque o simples dá trabalho e, ao contrário do que se pensa, nunca é primeiro, mas processo. E esse é o recado. Fazer teologia é descobrir o prazer da palavra curta, na construção muitas vezes trabalhosa que produz aquilo que é poieo. Ou seja, fazer teologia é desconstruir, e na imaginação construir de novo, percorrendo se for possível o caminho de todos, de cada humano. E é assim que, sem estardalhaço, a produção teológica ocupa lugar nos corações, cheia de imagens e significados.

Obrigado pelo agradável, bom e doce que expressa em letras a liberdade do marujo.

O sondar daquele menino lá atrás ajuda. O olhar deslumbrado porque a vida é a praça, os jardins do Flamengo, os repuxos brancos no entardecer, as pessoas que compõem o cenário como se tivessem sido colocadas lá pelo arquiteto. E o mar… Assim é! A humanidade coroa a Glória. Aceito o prescrito e reconheço.

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