A experiência, quando é profunda, se torna inesquecível. Por isso mesmo, tenho muito vívida a memória de uma pregação que realizei há mais de vinte anos. Talvez a mais marcante que tenha feito, menos por oratória, obviamente, e mais pelos reptos implicados. E mesmo hoje, depois de anos agnósticos, não consigo me desvencilhar da potência daquela reflexão matinal. Eu era um jovem seminarista de vinte anos de idade. Estava ali, em Pindamonhangaba, no interior paulista, numa capela do mais tradicional seminário teológico das assembleias de Deus, onde os sermões geralmente tinham como tônica central os textos bíblicos. E como eu não poderia fazer diferente, utilizei um texto que tratava do mistério da divindade. Mas, ele foi só um mote.
Eu queria era mesmo falar de uma música que havia me tocada incomensuravelmente. De todo modo, naquela conservadora instituição teológica não seria admitido, ao menos de forma explícita, admitir que uma “música do mundo” falasse de Deus com a verdade que eu percebia na canção escolhida. Naquele local se trabalhava a formação de lideranças pentecostais marcadas por uma teologia fundamentalista e, à revelia dos interesses da direção e de alguns professores e colegas, eu havia recém-descoberto, depois de anos e anos absorto no repertório musical evangélico, que existia um gênero chamado “música popular brasileira”. Foi paixão à primeira vista. Fiquei extremamente impactado com Chico Buarque.
Contudo, na manhã daquele dia foi Gilberto Gil a minha inspiração teológica.
Eram tempos em que eu havia descoberto também Rubem Alves. Eu lia e falava dele a todo instante. Havia também me encantado com as pregações de Ricardo Gondim, um pastor que até hoje (e talvez mais agora) me impressiona com sua poesia, profundidade, humanidade e grandeza. E um livro de Gondim fazia a cabeça dos rebeldes no seminário em fins da década de 1990: É proibido: o que a Bíblia permite e a igreja proíbe [1998]. Além de contestar os velhos problemas dos chamados “usos e costumes” em igrejas rígidas e disciplinadoras, Gondim também mostrava como o culto poderia ser um momento de celebração da beleza da fé. Entre outras coisas, com uma valorização do cancioneiro popular brasileiro, para além dos corriqueiros louvores. A teologia da cultura de Paul Tillich depois se somou a essas inspirações.
Com essas influências heréticas me sustentando, eu decidi pregar fundamentado numa música que não estava no sumário dos hinários evangélicos. A canção selecionada foi Se eu quiser falar com Deus [1981]. Nela, Gilberto Gil conseguiu uma proeza digna dos místicos. Trata-se de uma concepção da experiência com o divino e transcendente em termos que não cabem na rigidez dogmática da eclesiologia tradicional.
O primeiro dilema da composição trata do interesse ou não do piedoso de fazer a oração: “Se eu quiser falar com Deus”. A música irá, portanto, enumerar ações necessárias, caso seja essa a decisão. Afinal de contas, pode-se não querer “falar com Deus”, mas apenas “falar”. Os fariseus, por exemplos, eram hábeis em parecer “falar com Deus”, mas na verdade só falavam para serem vistos pelos homens. Se a ideia é menos destacar a aparência, e mais “falar com Deus”, diz o poeta baiano: “Tenho…”, como também diz o evangelho, “que ficar a sós” (entrar no quarto e fechar a porta). Mas também, “apagar a luz” (ninguém precisa ver e ser visto, parecer e aparecer nesse momento íntimo), “calar a voz” (solidão e silêncio para “encontrar a paz”). É preciso “folgar os nós” tanto “dos sapatos” e “da gravata” (das formalidades e exterioridades do corpo) como “dos desejos” e “dos receios” (dos pedidos e ansiedades da alma).
E prossegue o compositor: “Tenho…” também “que esquecer a data” (supressão do tempo e do calendário), “que perder a conta” (nada de calcular e fixar, medir e avaliar), “que ter mãos vazias” (esse esvaziamento é metaforizado na teologia pela encarnação do Cristo), bem como “ter a alma e o corpo nus”. A oração se torna um desafio humano diante das questões cotidianas, temporais, habituais. Essa nudez da alma e do corpo implicam justamente num esvaziamento. E é o tema da pureza e da simplicidade que está em jogo, por meio de um confronto do sujeito consigo mesmo, sem maquiagem ou máscara. Esse esvaziamento de si é fundamental, nos termos da música, para a oração.
E prossegue a prece-canção: “Se eu quiser falar com Deus”, ou seja, caso ainda insista na oração, mais algumas atitudes são necessárias. “Tenho”, diz ela, “que aceitar a dor”, “que comer o pão que o diabo amassou”, “que virar um cão”, “que lamber o chão dos palácios, dos castelos suntuosos do meu sonho”, que me ver tristonho”, “que me achar medonho”. Os sofrimentos da vida evidenciam a finitude e a impotência humana. Reconhecer a condição deplorável, frágil e ínfima dos homens permite justamente se colocar numa direção oposta aos que se pautam em prepotência e arrogância. O orgulho e a soberba não valem nesses momentos de prece, caso se queria “falar com Deus”. “E apesar de um mal tamanho”, ele arremata, é possível “alegrar meu coração”. O orgulho precede a ruína, mas o choro que pode durar uma noite é seguido por um dia de alegria.
A terceira estrofe da canção retoma o desafio: “Se eu quiser falar com Deus”, ainda diz: “Tenho”, segue ele, “que me aventurar” (como o salto kierkegaardiano?!), “que subir aos céus sem cordas pra segurar” (uma entrega confiante e misteriosa) e “que dizer adeus” (seguir o caminho proposto). E com isso, “dar as costas, caminhar decidido, pela estrada que ao findar vai dar em nada”. Essa esperança de trilhar um caminho imprevisto, improvável, surpreendente, “vai dar em nada, nada, nada, nada…”, “do que eu pensava encontrar”. O esvaziamento leva ao nada em seu duplo sentido: o vazio e a coisa nenhuma que não se esperava achar.
Nem é preciso ter fé ou ser religioso para perceber a grandeza dessa poesia-oração. Mas para quem tem fé ou quer “falar com Deus”, a música pode propor algo mais: a honestidade de uma oração que está pautada nas inquietações da fé e não nas certezas soberbas. Não é uma oração onde são enaltecidos os feitos do devoto em relação a si mesmo. A oração é aqui um drama complexo de sentimentos e contradições do encontro humano-divino e do humano consigo mesmo nesse encontro com o divino; mas apenas “se eu quiser”.